Iniciada a viagem era tempo de conhecer o admirável mundo novo que se abatia sobre os meus olhos incrédulos e mente atordoada, pois nada nos prepara para as terras abaixo do "Coração das Trevas", a que alguém chamou "Os Cus de Judas".
Nas terras da Lusitânia as promessas de todas as mordomias e condições para desenvolver a actividade profissional foram imensas, tudo aquilo que um gestor pode desejar é prometido à porta de um qualquer avião na Portela com destino ao 4 de Fevereiro, mas quiçá pela duração da viagem com as suas longas 7 horas o quadro mude de figura e a conjuntura económica se altere de tal forma que não permita cumprir com o que ficou no papel. A adaptação não foi fácil. Nunca é. À dura realidade de um país com tudo por fazer bateu-me a realidade da pior cara dos nossos conterrâneos. A responsabilidade social é coisa linda de ser ver, mas apenas aplicável na aldeia onde se é rei, pois como olhos que não vêm coração que não sente, a mais de 5 mil kms de casa isso é coisa que não importa. Aqui revela-se a pior face de alguns dos nossos "grandes" empresários, tão preocupados em dar boas condições de trabalho que, entre outras coisas, chegam a transformar um pequeno T3 numa caserna de quartel tal a quantidade de beliches que por lá cabem. Certamente para fortalecer o espírito de equipa... Já para não falar na sustentabilidade, tão poupados que são nas viaturas da empresa e no gerador lá de casa, que transportes públicos e luz eléctrica são coisas que não faltam em Luanda. Fui literalmente atirado à minha sorte. Há que nos chame expatriados, eu senti-me desterrado. África esventra-nos, mostra-nos a nossa verdadeira essência, e eu vi e senti muita coisa abominável de quem menos esperava: daqueles que pisam o mesmo solo que nós, que nasceram nas mesmas terras, sangue do nosso sangue. Mas a vida é uma aprendizagem constante, um viagem que a cada paisagem nos ensina algo para o caminho que temos pela frente e se o trilho que escolhemos foi o errado há que arrepiar caminho e recomeçar a marcha. O regresso foi inevitável. As escolhas não são definitivas e regressar por menos que aquilo que tínhamos antes de partir não seria logicamente para todo o sempre. A oferta de uma esmola em troca do tratamento sofrido nos Cus de Judas foi como um murro no estômago. Mas lá diz o ditado que quem está mal muda-se e não tardou muito que as malas não fossem feitas outra vez, mas desta feita às ordens de alguém que não o rei da aldeia. E ainda se queixam que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, certamente não seria verdade se não aliassem a desértica paisagem ao deserto de ideias. Talvez se confirme que "Santos da casa não fazem milagres", pois realmente afinidade com os santos da minha terra foi coisa que raramente tive, já que até o primeiro reconhecimento recebido ao suor do trabalho foi nas terras ao outro lado do Guadiana.
Mas felizmente tudo muda, nada é para sempre, o que comprova que o esforço e a procura do mérito valem a pena. Se a vida é uma longa viagem, deve ser a única onde não devem existir aéreas de serviço, parar só no fim.
E assim a viagem continua, Angola está no mesmo sítio, mas também ela a mudar constantemente, pelo que só Deus saberá qual o próximo destino desta longa aventura.
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